quarta-feira, 11 de maio de 2011

PICASSO NOS DÁ VONTADE DE VIVER

   A exposição do maior artista do século em S. Paulo amplia nossos olhos. Picasso mudou o olho humano. Cèzanne já tinha pintado a matéria íntima da natureza. (Ele disse: "Eu sou a consciência da paisagem que se pensa em mim"). Van Gogh já tinha pintado o tempo. Isso. Cèzanne recortou o espaço e Van Gogh captou o tempo. Olhem um Van Gogh e vejam o tempo passando sobre as coisas. Nada pára em Van Gogh: a igreja se move, os lilases ventam, a matéria fervilha em cada pincelada, as cadeiras, as camas, as coisas passam, em progresso, parece que vemos os átomos girando, os girassóis rodando, vemos a morte passando no rosto do doutor Gachet ou da Arlesiana. Depois, Picasso chega e pinta os dois: o espaço-tempo. Sua viúva disse que Picasso não podia ficar com a mão parada. Ele era táqui-psíquico, não parava um segundo de ver o mundo dentro e fora dele. Mexia em tudo: de um peixe comido, ele tirava a espinha e fazia uma cerâmica, um selim de bicicleta, ele transformava em cara de boi, o regador em um homem, um automóvel em macaco, um beijo na praia em uma fome voraz entre corpos, virava uma mulher em flor e flor em mulher. Sua mão não podia parar - tinha de ficar desenhando para
não enlouquecer.


Fez cerca de 36.000 quadros, além de esculturas, cerâmica, tudo. Esta exposição aqui na OCA de São Paulo (mais um gol de placa da Brasil Connects) mostra não a "importância" de Picasso na Arte, mas justamente sua recusa de ser "importante", de ser "metafísico", de ser um pintor "acima" da vida e de todos nós. Ele sempre quis ser um de nós. Picasso é um pintor popular. Por isso é que as filas se formam para ver seus quadros e esculturas. As pessoas vão ali para se ver. Picasso era um rude espanhol, um torcedor de futebol, um comedor de mulheres, um glutão, um sacana aficionado por touradas e que não queria humilhar ninguém. Picasso era um espantoso retratista da realidade, só que a "realidade" para ele, não era essa série de arestas e volumes verossímeis a que estamos acostumados, pousados no horizonte da perspectiva burguesa. Picasso também nunca acreditou na babaquice do abstracionismo metafísico, que almeja uma platônica essência de algo finalmente flagrado, "para longe", "mais além" da aparência suja do mundo. Picasso sempre amou justamente esta face suja do mundo, sempre viveu em busca da figura, sim, da figura, mas que, para ele, era muitíssimo mais constelada, muito mais complexa e mutante que as chatas realidades que o burguês chama de "naturais" ou "corretas". Picasso sabia que nada existe "au delá de la vie", nada além da vida, nada "over the rainbow", nada além do nosso olho que, esse sim, pode ser ampliado como um telescópio ou um caleidoscópio, para ver muito mais, se não estiver domesticado por ideologias ou delírios babacas. Picasso nunca precisou dos excessos do Dada ou do surrealismo para sair "fora" da aparência. Sabia que isso era impossível e ridículo, de certo modo. Nunca precisou de uma realidade "supra", em relação à figura naturalista. Picasso não deformava nada, como costumam dizer; ele é quem tinha outra forma, seu olho negro profundo que nos fita sem parar parece dizer: "Eu vejo todos os lados das caras, dos corpos, eu vejo as figuras dentro das outras, eu vejo o espaço entre as pessoas, as linhas invisíveis que as ligam, os vazios dentro delas, eu vejo também o ridículo da beleza como algo 'sublime' a se chegar. Não há nada a se atingir. Por isso, minha frase "Não procuro; acho" é tão mal interpretada. Ela não quer dizer que eu tenho talento ou algo assim. Não. Essa frase quer dizer que eu não sei, antes, para onde estou indo; eu só chego ao quadro ao final. Raramente sei o que farei, a priori; por isso, (cá entre nós), meu pior quadro é 'Guernica', feito sob encomenda para criticar a guerra... É legal, mas meio alegórico..."

Picasso é um grafiteiro. Não busca "auras". Seus quadros são até mal acabados, nas coxas, como o cotidiano. Picasso é sadio. Nunca teve a romântica amarelidão do "sentido" ou do "belo". Adorava viver e pintava a própria vida, felicíssimo, de bermuda, rindo, comendo, trepando e fumando, nunca acreditou que o "artista só é grande se sofrer" - o artista só é grande se viver.

Estive outro dia no Museu  Picasso em Paris e na exposição da Pinacoteca Francesa, que exibe a coleção de sua última mulher Jacqueline e, na saída, Yami Araújo diz a meu lado: "Picasso me dá vontade de viver!" É isso mesmo. Ele não nos faz sonhar com nada que não esteja presente, palpável, vivo. Em sua arte, há uma permanente luz até de caricatura. Ele não tinha uma "mensagem" para passar ao mundo ou besteiras assim. Ele pintava a própria mudança, seu devir, seu envelhecer, suas comidas e amores, até os maravilhosos e eróticos quadros de velhos apalhaçados, de mosqueteiros loucos nos últimos meses de seus 92 anos de vitalidade. Picasso pintava a forma das coisas desconhecidas. Peguem um acrobata seu, um beijo na praia, um minotauro estuprando uma virgem, peguem suas amantes viradas ao avesso, peguem tudo e ali só existirá seu cotidiano muito parecido com o nosso. Os grande artistas buscam a realidade, pois como disse Woody Allen, "ninguém sabe o que é a realidade, mas ainda é o único lugar onde se come um bom bife". Um historinha do nosso grande Iberê Camargo também ilustra o que digo sobre Picasso. Iberê passou a vida pintando objetos e obsessões reais que ele viveu e sempre chamado de "abstrato". Uma vez, numa exposição sua, ele veio indignado reclamar para o Mario Carneiro, (outro pintor e discípulo): "Mario... veja esse quadro (diante deles uma tela aparentemente abstrata). Pois, eu pintei aqui essas "pirocas encaramboladas com chapéus" e veio aquela mulher idiota ali e me disse que eram "barcos na Baía de Guanabara". Não é um absurdo?"

Nós não vemos Picasso; ele é que nos vê. Por isso, faz tanto sucesso. Ele nos explica. Picasso sabia que a morte acontece, mas não existe. Só existe a vida. - Arnaldo Jabor.



2 comentários:

ઇઉ ઇઉ disse...

Um post maravilhoso, pena que poucas pessoas se lembrem de acessar algo relacionado aos pintores maravilhosos do mundo, ou se leem nem se dão o trabalho de deixar um oi estive por aqui! rsrsr Adorei seu artigo, voltarei com mais tempo pra pesquisar melhor seu blog! Um abraço forte e tenha um bom dia!

blogtikosa disse...

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